Para ti
*
Fue para ti
que deshojé la lluvia
para ti solté el perfume de la tierra
toqué la nada
y para ti fue todo
Para ti creé todas las palabras
y todas me faltaron
en el minuto en que tajé
el sabor del siempre
Para ti di voz
a mis manos
abrí los gajos del tiempo
asalté el mundo
y pensé que todo estaba en nosotros
en ese dulce engaño
de que todos somos dueños
sin tener nada
simplemente porque era de noche
y no dormíamos
yo bajaba en tu pecho
para buscarme
y antes de que la oscuridad
nos ciñese la cintura
nos quedábamos en los ojos
viviendo de uno solo
amando de una sola vida.
~
La tardanza
*
El amor nos condena:
tardas
incluso cuando llegas antes.
Porque no es en el tiempo que yo te espero.
Te espero antes de haber vida
y eres tú quien hace nacer los días.
Cuando llegas
ya no soy más que nostalgia
y las flores
me cuelgan de los brazos
para dar color al suelo en el que te yergues.
Perdido el lugar
en que te aguardo,
sólo me queda agua en el labio
para aplacar tu sed.
Envejecida la palabra,
tomo la luna con mi boca
y la noche, ya sin voz
se va desnudando en ti.
Tu vestido cae
y es una nube.
Tu cuerpo se acuesta en el mío,
un río se va aguando hasta ser mar.
~
Identidad
*
Necesito ser otro
para ser yo mismo
Soy grano de roca
Soy el viento que la desgasta
Soy polen sin insecto
Soy arena sustentando
el sexo de los árboles
Existo donde me desconozco
aguardando a mi pasado
ansiando la esperanza del futuro
En el mundo que combato muero
en el mundo por el que lucho nazco.
~
Horario del Fin
*
se muere de nada
cuando llega el turno
es sólo una sacudida
en la carretera por donde ya no vamos
se muere todo
cuando no es el justo momento
y no es nunca
ese momento
~
Primera Palabra
*
Aproxima tu corazón
e inclina tu sangre
para que yo recoja
tus inaccesibles frutos
para que pruebe de tu agua
y repose en tu frente
inclina tu rostro
sobre la tierra sin vestigio
prepara tu vientre
para la anunciada visita
hasta que en los labios humedezca
la primera palabra de tu cuerpo.
***
Mia Couto (Beira, 1955)
Versiones de Raquel Madrigal Martínez
/
Para ti
*
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida.
~
A demora
*
O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.
Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.
Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.
Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.
Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.
O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.
~
Identidade
*
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem inseto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço.
~
Horário do Fim
*
morre-se nada
quando chega a vez
é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos
morre-se tudo
quando não é o justo momento
e não é nunca
esse momento
~
Primeira Palavra
*
Aproxima o teu coração
e inclina o teu sangue
para que eu recolha
os teus inacessíveis frutos
para que prove da tua água
e repouse na tua fronte
Debruça o teu rosto
sobre a terra sem vestígio
prepara o teu ventre
para a anunciada visita
até que nos lábios umedeça
a primeira palavra do teu corpo.
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